05 nov 2024

BICHA NAVALHA

O CORPO DISSIDENTE QUE, ASSOCIADO À ARTE, ASSENTA LUTA E GANHA AUTONOMIA

POR VICTOR SORIANO

Ana Matheus Abbade, de 21 anos, é uma artista gonçalense que tem as unhas como centralidade de seu trabalho.
Estudante de artes visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ela iniciou esse processo artístico durante o período de trauma e reclusão que viveu após uma agressão transmisógina na Rua do Ouvidor, centro da capital fluminense. Hoje, Ana expõe no espaço de arte apoidea, em Berlim, seu último trabalho: “Peixe Voador”.

Gravação do projeto Peixe Voador, da artista Ana Matheus Abbade, que fala sobre o hibridismo. “Ele voa porque o corpo dele possui asas ou ele possui asas em sua consistência de peixe? É um trabalho de suposição”. Vídeo retirado da conta pessoal da artista no Instagram.

Enquanto participava de um dos muitos fervos que invadem a noite no Centro do Rio, Ana foi agredida por um total desconhecido.

O soco chegou sem nenhum motivo aparente, há não ser a própria figura da artista: alta, magra, seu rosto à beira da androginia não fosse pela barba, os lábios pintados e as unhas postiças, Ana não passa despercebida na multidão. Do jeito de se vestir à forma de falar, sua persona desafia os conceitos conservadores de gênero.

#UNHAéNAVALHA. Foto retirada da conta pessoal da artista.
#UNHAéNAVALHA. Foto retirada da conta pessoal da artista.

O impacto do ataque iniciou um processo de autorreclusão para Ana. Em casa, ela começou a dedicar horas e horas do seu dia no cuidado com as unhas, em um estado quase letárgico de concentração nesse ciclo vicioso.

“Foi uma simultaneidade de tudo. Nesse momento, comecei a discordar muito do conceito de homofobia, a pensar muito em transmisoginia e o que é isso. Por que discutimos homofobia quando o que se quer matar não é a sexualidade, mas é a expressão de uma identidade, a expressão de não-normalidade? E a unha foi algo que meu corpo produziu muito e muito rápido. Fui cuidando até que isso se tornou um lugar familiar”, explica sobre o processo criativo que vem seguindo desde então.

Por que discutimos homofobia quando o que se quer matar não é a sexualidade, mas é a expressão de uma identidade, a expressão de não-normalidade?

– Ana Matheus Abbade

É Ana quem abre a editoria de Arte da Revista Híbrida, explicando todas as complexidades biológicas, técnicas e teóricas de suas unhas, o que pensa dos atuais movimentos políticos, a resistência e violência dos corpos, “Queermuseu” e como ela relaciona a profissão de manicure à de artista.

Híbrida: Como funciona o seu processo criativo?

Ana: Tudo que penso sobre imagem vem de incômodos e gira em torno das unhas. Meu processo é um pouco de tudo aquilo que vivo e assenta no meu corpo.

Meu primeiro trabalho foi uma hashtag em 2015, o #UNHAéNAVALHA. Foram 380 publicações, de fotos que são minhas a fotos que são de outras pessoas, criando uma espécie de rede, de malha. Da hashtag, começo a me perguntar o que ela significa enquanto vocabulário e número de palavras que estão me acontecendo, como isso dá força para o trabalho. Meu processo vem um pouco disso, da dualidade entre as linguagens em arte e as linguagens em manicure.

H: Quando você tematiza o corpo coletivo, está falando sobre inquietações em rede ou especificamente sobre o corpo do outro? Ou ainda, sobre os dois?

Ana: Acho que tem um pouco dos dois, mas ainda mais.

Gosto de pensar que o corpo coletivo é aquilo que o atravessa e a gente não sabe bem explicar o porquê. Um grupo se junta a partir de uma intenção que não é pré-estabelecida. Não é algo criado e que deve ser seguido.

Meu corpo Ana Matheus é justamente essa multidão, que eu chamo também de exército.

Ana Matheus Abbade. Foto retirada da conta pessoal da artista no Instagram.
Ana Matheus Abbade. Foto retirada da conta pessoal da artista no Instagram.

Híbrida: Você acha que é importante pensar o movimento LGBTQIA a partir da arte? Que a arte consegue nomear as forças do movimento de uma forma que o movimento não consegue?

Ana: Acho que é preciso pensar movimentos, mas não a partir da arte, e sim associados ou relacionados à arte. Pensar numa associação que consiga ser puramente um veículo de opinião política não me interessa.

Estou mais interessada naquilo que dificilmente a gente nomeia, mas que instaura uma política diante do que seja dissidente. Que cause estranhamento e embaralhe concepções como a de autoria, que acontece quando se realiza um show, por exemplo.

Híbrida: O que seria o “assentamento de luta” presente no seu trabalho?

Ana: Eu gosto bastante da palavra assentamento. É territorial, mas ao mesmo tempo é aquilo que se assenta, aquilo que decanta. O processo de decantação é algo no presente, mas que se constitui no tempo, num presente atrás de mim.

Gosto de pensar nas coisas que estão para trás. Pensar na eternidade que se assenta em nosso corpo como hematomas, que decanta dores à nossa ancestralidade e que ao mesmo tempo assenta luta. É um movimento oposto da antropofagia, talvez uma autofagia com minha própria casca.

Anúncio de Ana como manicure babadeira. Retirado da conta pessoal da artista no Instagram.
Anúncio de Ana como manicure babadeira. Retirado da conta pessoal da artista no Instagram.

Híbrida: O corpo tem função transitória na arte enquanto plataforma, processo e produto?

Ana: Penso bastante na transição da matéria, é inclusive uma das relações em torno da poética que estou construindo. A matéria se transforma em muitas coisas, como na unha. Vejo relações, por exemplo, entre o trabalho da manicure e a manipulação de um labor artesanal ou de um labor científico e técnico.

Quando eu transito a unha à navalha, elas estão alongadas e pontiagudas. Quando penso em “unha de garota”, de close e de beleza, penso que a gente não quer ter só unha de garota. A gente quer ter unha.

Híbrida: O seu trabalho é arte de contestação?

Ana: É difícil falar, porque assim posso soar como um mártir ou uma protagonista das contestações. E o que estou fazendo tem um certo movimento bem grande em torno.

Talvez o meu trabalho seja uma antena de Wi-Fi, não apenas uma contestação (risos).

Se o meu trabalho for de contestação, é no que tange crescer a unha como uma contestação à normalidade. Essa avalanche de células que atravessa a nossa pele talvez seja uma contestação. O que eu faço é tentar potencializar esse movimento e essa dinâmica.

Híbrida: Como surgiu a vontade de trabalhar a unha?

Ana: Houve uma simultaneidade de tudo.

Foi no mesmo momento que comecei a estudar arte. Tentei a formação de manicure e desisti justamente pelo motivo que me fez abordar a unha numa perspectiva artística. Queria aprender a fazer esmalte, ser uma manicure autônoma e não contribuir para um sistema econômico, simbólico e social, que faz parte de serviços de lazer, de beleza e de saúde.

Parti exatamente do processo de redução da unha a um objeto de uso majoritariamente feminino, que deve estar submetido à indústria cosmética, mas que é também a característica da higiene. Tive esse impulso de potencializar um metabolismo, mas como uma chave de criar estranhamentos. Seja com o tocar, o acariciar, o próprio beijar ou a masturbação.

Ao mesmo tempo, para mim, unha vem de um pensamento de trauma individual, de quando fui agredida. O que acho positivo é que pensar unha é justamente não pensar naquele lugar. Ela é justamente isso, algo que cresce independente das forças do entorno. Elas são autônomas a essa política, não são apenas para ferir o patriarcado.

"Tive esse impulso de potencializar um metabolismo, mas como uma chave de criar estranhamentos. Seja com o tocar, o acariciar, o próprio beijar ou a masturbação" - Ana Matheus Abbade
"Tive esse impulso de potencializar um metabolismo, mas como uma chave de criar estranhamentos. Seja com o tocar, o acariciar, o próprio beijar ou a masturbação" - Ana Matheus Abbade

Híbrida: Por que transmisoginia e não homofobia?

Ana: Acho que isso se responde com perguntas.

O que falamos quando dizemos trans e misoginia? Pensar em transmisoginia é perguntar o que de fato quer se matar.

Quando a gente pensa em assassinar com três tiros quando se pode com apenas um, não é um simples homicídio. É um ritual. É um ritual patologizado, para transformar-se numa fobia.

Então acho que é um problema social e cultural e por isso não cabe a um grau de fobia, mas a uma aversão e vontade histórica de eliminação daquilo que é transviado à norma. E, de alguma forma, relaciona-se a políticas misóginas também.

Foto: Larissa Marques / Instagram pessoal de Ana.
Foto: Larissa Marques / Instagram pessoal de Ana.

Híbrida: Quando você se reconheceu como artista?

Ana: Quando eu me vi íntima com meu processo. Quando comecei a pensar nas coisas antes de dormir, quando comecei a entender e pensar no que eu estava fazendo.

Talvez daqui uns cinco ou dez anos eu não me veja mais como artista. Eu me vi como artista quando desmontei minha ideia de artista e comecei a me associar à ideia de manicure, ou de menos artista. Talvez aí a ideia de artista tenha feito mais sentido para mim.

Híbrida: Qual a importância de exposições e performances?

Ana: Tenho algumas ressalvas quanto a performances. Acho que é um espaço tão constante na capitalização. Performance como linguagem acho que vira massagem.

Para mim, performers são os meus clientes no Manicure Show. Talvez essa seja a minha autocensura, mas eu me vigio para não entrar nas tags de arte e gênero, arte e corpo, política e performance ou arte e vida, por mais que tenha um pensamento de ativismo.

Híbrida: Sobre a sua atual exposição, “Peixe Voador”, o que pode dizer sobre?

Ana: Está agora em Berlin, na Alemanha. É uma associação do hibridismo que há em um peixe-voador.

Falo para algumas pessoas e isso gera estranhamento.

Peixe voa? Não se trata da espécie. O que faria o peixe-voador voar? As nadadeiras com funções de asas ou ele voa para escapar da predação? Ele voa porque o corpo dele possui asas ou ele possui asas em sua consistência de peixe?

É um trabalho de suposição.

São as asas que fazem voar ou são só as barbatanas?

Arte de divulgação da exposição "Peixe Voador".
Arte de divulgação da exposição "Peixe Voador".

Luiz Guilherme Osorio

VICTOR SORIANO

Victor é graduando do curso de jornalismo da ECO/UFRJ. É analista de inteligência digital e pesquisa corpo e arte. Trabalhou como gerente de branding, repórter e ilustrador de iniciativas como Revista Apuro e Portal Overdose e foi social media da websérie “Drag-se”.

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